domingo, 17 de dezembro de 2017

Uma ode à página em branco


Meu amado, que até tão pouco tempo era um anônimo a ser completamente explorado, agradeço encontrá-lo numa esquina da vida, sem ver fotos, vídeos e emoções fortuitas regradas por textos esparsos numa rede tecnológica qualquer.

Engraçado pensar em você e perceber que venho te esmiuçando como fazia ao iniciar uma amizade nos anos 80 e 90. Reconhecê-lo em páginas que vão sendo preenchidas sem afoiteza. Vejo a beleza de não ter desvendado os lugares pelos quais percorreu, as comidas que saboreou, as pessoas que te circundam, antes de te desejar.

Você me oxigena ao me surpreender com suas histórias, sem que eu as tenha lido ou visto, ao alcance de um clique qualquer, em alguma rede por aí.

Não se esqueça de que sempre estarei com os cinco sentidos a postos para ir preenchendo os nossos quebra-cabeças sem pressa de chegar ao fim.

domingo, 10 de julho de 2016

Cambaleando



Deixa estar. Dizia ela ao pé do ouvido, sem grandes pretensões de continuar caminhando junto dele. Assim, conforme andavam a passos curtos e lesados aqueles encontros sem comprometimentos permaneciam, sem impulso por fixar território, lastrear em documentos a vida a dois. Quedavam ali, naquela vida mansa, sem muito a buscar.

Quando queriam companhia, um poderia estar disposto ao encontro, o outro não, e vice-versa. Quando queriam, encontravam-se. Era assim, cotidianamente pactuavam o não enredamento. Ligavam-se por fio tênue. Era o vício de liberdade. De privacidade.

Assim, dois anos e pouco se passaram, até que ela experimentou em outro canto sensação nova. Cobrança por presença, por laço, por afeto continuado. Aquela fala cheia de calor acolhedor ao pé do ouvido: Fica mais, fica um dia, fica uma semana, mês, fica pela manhã, fica pela tarde, não se vá a noite.

Não teve jeito, deixou-se cativar. Fincar morada, assim se deixou amar, se deixou querer. Descobriu liberdade dentro da fronteira do querer estar ao lado dele e assim se fez mais livre do que antes, dali se fez vida, se fez riso, se fez tristeza, se fez história.


E até hoje lá estão se querendo.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Silêncios de alma



Ela não entendia o sentimento que a dominava ao ver o homem de sua quase morte escoltado. Aquele ser, que com o tempo, tinha a transformado em seu bibelô pessoal.

Vendo-o partir sob escolta policial algo de triste, medo, incerteza, alegria se misturavam. Ainda tinha a memória do trecho de sua vida em que fora feliz, os meses em que aquele mesmo sujeito que a violentara por tantos anos a chamava de doce de mel e admirava com ar apaixonado suas curvas. Aquele ser que a retirara da dor diária da violência paterna.

Foram poucos os meses de paz. Logo, o homem transformou o alívio em desespero. Fez com que retornasse àquela mesma escuridão de tapas, socos e palavras vis.

Trazia no rosto as marcas de uma ausência de infância, de mocidade, de maturidade. Pancadas secas, palavras atrozes tinham-na levado ao limite da vida. Quando caminhava pela rua, tapava os hematomas por envergonhar-se, por acreditar que havia apenas uma culpada naquele ciclo de dor: ela.

Depois de anos de violência e recomeços com intervalos de gentilezas fortuitas, no último dia de sua quase morte, houve algo de diferente. Dessa vez, fora internada. O homem foi denunciado, não por ela, por vizinhos, com a prova no relatório médico de que, por pouco, não morrera.

Agora, ele estava ali na sua frente. Caminhava. Partia para uma grade. Ela, na incerteza do que estava por vir, mirava o sujeito e sentia um vácuo dentro de si com uma ponta de esperança. Que história carregava? Quem era ela?  

Viu, em sua carne moída, algo nada nítido. Apenas reconhecia que tinha sido uma mulher desejada por aquele homem por tão pouco tempo, para logo depois ser transformada naquele ser dilacerado. Ainda estava fraca para mirar a saída, mas tateava-a, com temor do novo, apenas tateava. 


domingo, 24 de abril de 2016

Cenários

Não me confundo.
Despertei de anos sem começos.
Ao menos dessa vez, pé ante pé, alcancei-te.
Regressar?
Não há como!

Aqui, os silêncios se comunicam.
As falas são entremeadas por substantivos
As ações verbalizadas sem cortes
As experiências relatadas com dendê
Cúmplices, sem crimes

Embaralhei-me em ti,
Por inteiro, nua, crua, sua.
Dei partida ao determinante.
Sua vida amontoou-se na minha
Desfez as amarras de tempos mesquinhos.

Reiniciemos sempre,
Esse movimento
Do alinhavar de tijolos lambrecados de cimento.
Reiniciemos sempre,
Esses olhares, essas mãos, essas bocas que se iluminam.

Em círculos, ao raiar do sol, lá bem lá, pulsaremos.

domingo, 31 de janeiro de 2016

Catando silêncio no mato

No meio da floresta, tentava aquietar-me e sem sucesso o barulho aqui de dentro se confundia com os chiados da natureza. Pelejava para diminuir a voltagem e nada.

Via que mesmo no meio do mundaréu de árvores, raízes, folhas, bichos seguia vindo um turbilhão de histórias. Só me dava conta de que estava recortando personagens quando percebia que queria silenciar os pensamentos.

No fundo do mato sereno. No medo dos bichos do mato. No barulho ensurdecedor do pensamento. No nada de ter tudo e não ter nada. Na riqueza de uma vida simples.

Em um momento qualquer, senti que me serenei. Catei o silêncio por tempo indeterminado quando olhava o rio, riscado pelo navegar do barco.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Acumuladores de tantos e tão poucos

Seja bem-vindo. É só entrar. Não precisa fechar a porta. Deixe-a aberta. Vai ficando, sinta-se à vontade. E se partir deixe um bilhete desses que me façam revisitá-lo. Nele não fale até logo, não diga adeus de jeito algum. Mas se decidir partir e não deixar nenhuma matéria. Tudo bem. Não há problema. Aqui onde moro, em cada fresta, há entulhos de coisas que acumulo e em alguma fresta lá você estará. Não se estranhe. Sou dessas doidas que não deixa ir, nem se quisesse, conseguiria. Estará guardado nem que seja no pedacinho de um papel, numa imagem captada em uma tarde qualquer. Ou mesmo nessa velha caixola que não se esquece. Sou guardadora. Sou empilhadora. Não tem jeito. Faz parte de mim. Revisitar, eis minha marca. Seja num canto ou noutro. Seja daqui a um segundo, seja no final de tarde de um domingo perdido, onde bate aquela aguda lembrança das frestas que são colocadas em slides. Alguma fagulha pode reacender e um traço de você surgirá. Se decidir permanecer, talvez encontre onde habito um pouco de bolor, fungos, mas nada muito tóxico. Os acumuladores são assim. Não conseguem se desfazer da poeira, da fauna de suas vidas e deixam-se estar.


domingo, 27 de dezembro de 2015

Entre nuvens



Ela nasceu na década passada onde a vida era menos tecnológica, sem tantas parafernálias absorvedoras de minutos, comprometedoras de horas. Um link leva ao outro que leva ao outro que leva a mais um.

Sempre que se dava conta do ponteiro,  acabava por ter a sensação de que foi absorvida por um outro plano esquecido da vida, porque estar naquele mundo era parecer não saber viver, era se perder no vácuo de retalhos de informações. No nó da web, pouco sabia o que originou o primeiro clique e uma nebulosa massa disforme se formava em sua mente.

Nessa realidade lá estava ela em mais um desses encontros fortuitos possibilitado por uma troca de alguns cliques no teclado.

Ela diante do desconhecido era inábil. Não sabia fazer-se interessante, inteligente e sutil. Parecia um animal gigantesco destrambelhado, sem limites e travas sociais em alguns momentos; em outros, calava-se sem saber o que dizer, porque dizer demais poderia conduzir o sujeito à interpretação de que estava diante de uma rádio indiscreta e, se falasse pouco, não demonstraria conteúdo.

Deveria falar mais sobre o mundo ou sobre si? Poderia parecer ridícula se expusesse esse ser cheio de contradições, incongruências e incertezas? Poderia dizer bobagens? No conturbado miolo desconhecido de encontrar alguém numa sociedade em que as pessoas estão mais esquisitas e ela inclusive, como se colocar?

Seria o fato de estar num mundo onde a superficialidade dos encontros parecia prevalecer? Seria a tecnologia que levou a essa carência de formas mais autênticas e profundas de se conhecer alguém?

Quem sabe certa peça da vida teria sido esquecida no meio do caminho. O parafuso fundamental da necessidade humana de conhecer pessoas e destrinchar histórias de vida. Os seres humanos, em certa medida, perderam a capacidade de escutar e olhar no olho, dada às inúmeras portas abertas pela tecnologia.

Talvez seja a facilidade de hoje em dia encontrarem guetos confortáveis, em que pessoas com pensamentos comuns se associam em redes de debates e onde o anonimato exacerbou a intransigência  e afogou o diálogo.

Ela se questionava sobre a esquisitice das pessoas que conhecia por aí. A inabilidade que os seres humanos têm tido de cultivar laços mais intensos. A fugacidade dos encontros e a grande possibilidade dos desencontros. Pessoas que desistem facilmente umas das outras diante da adversidade.

Só sabia de uma coisa: era preciso se afastar dessa rotina de terabytes, de redes sociais, de conexões fugazes, do amontoado de informações e pessoas desconexas.

Era necessário esquecer-se,  perder-se e, mais uma vez, ajeitar um punhado de roupa e colocar o pé na estrada. Ficar offline.